quarta-feira, 20 de novembro de 2013

RACISMO NA LITERATURA DE CORDEL



REFLEXOS DO PRECONCEITO RACIAL
NA LITERATURA DE CORDEL
O exemplo clássico de “A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO”

Por: Sílvio Roberto Santos
(exclusivo para o blog MALA DE ROMANCES)

À leitura de A Chegada de Lampião no Inferno de José Pacheco, clássico do cordel de gracejo e parte de todo um ciclo acerca do périplo além-túmulo do cangaceiro por antonomásia, à primeira vista, poderia alguém se indagar de onde o autor retirou sua representação do reino de Lúcifer. Por que os demônios são identificados com a raça negra? Há obras especializadas que tratam do tema racismo na literatura de cordel, inclusive com levantamento estatísticos, as teses proliferam, pugnando pelo racismo, ou não.
Tanto, que anos atrás ao falar da pretensão de desenvolver uma pesquisa a esse respeito, advertiu-me o jornalista Wanderley Pereira: Ah, já existe! Pacheco, de certa maneira, comunga sua representação com o maior poeta que já  caminhou sobre este vale de sombras: Dante.  O Inferno dantesco está povoado de demônios que blasfemam, monstros que trombeteiam, e sempre negros, embora não sejam africanos, uma verdadeira “tropa da Abissínia”. Câmara Cascudo em sua obra seminal Dante Alighiere e a Tradição Popular no Brasil é quem melhor trata a questão da influência do poeta florentino na cultura popular, com a autoridade costumeira.  Pacheco transpôs as características da sociedade de sua época para seu famoso folheto. Há livros de pontos, padaria, falta de inverno, molecas moças que quase queimam o “totó”  e outros sustentáculos viciosos do velho sistema patriarcal nordestino. Mas enquanto a Commedia de Dante não objetiva fazer rir, o inferno criado por Pacheco, sim. Não conheço, no universo do cordel, uma sátira mais inspiradora ao riso que esta.
Já Glauber Rocha em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, não hesitou em incluir na última parte do filme, que mescla cordel com ópera, a íntegra do poema, ultrapassando a índole satírica dos versos. Penso que seria anacronismo, hoje, no dia da Consciência Negra, rotular a grande obra de José Pacheco de racista. Há todo um substrato sociológico, que precisa ser levado em consideração para um tratamento adequado desse dilema. Talvez, haja uma certa ginga mental do autor em repassar para a consciência do leitor, criticamente, uma verdade desagradável, pois injusta, qual seja a permanência, após a Abolição, de impeditivos tradicionais do progresso material do outrora elemento servil. Como bem diz Arievaldo Viana, desvelando o maniqueísmo implícito: "José Pacheco, visivelmente mestiço (quase negro, na verdade cafuso) apenas traduzia em versos o pensamento vigente no Nordeste de seu tempo. O inferno era povoado por pretos.”


A chegada de Lampião no inferno
José Pacheco da Rocha
(TRECHOS)

Um cabra de Lampião
Por nome Pilão Deitado
Que morreu numa trincheira
Em certo tempo passado
Agora pelo sertão
Anda correndo visão
Fazendo mal-assombrado.

E quem foi quem trouxe a notícia
Que viu Lampião chegar
O inferno neste dia
Faltou pouco pra virar
Incendiou-se o mercado
Morreu tanto cão queimado
Que faz pena até contar.

Morreu a mãe de Canguinha
O pai de Forrobodó
Três netos de Parafuso
Um cão chamado Cotó
Escapuliu Boca Insossa
E uma moleca nova
Quase queimava o totó.

Morreram dez negros velhos
Que não trabalhavam mais
E um cão chamado Traz-cá
Vira-Volta e Capataz
Tromba Suja e Bigodeira
Um por nome de Goteira
Cunhado de satanás.

Vamos tratar da chegada
Quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
No portão apareceu:
— Quem é você, cavalheiro?
— Moleque, eu sou cangaceiro
Lampião lhe respondeu.

— Moleque, não! Sou vigia
E não sou seu pariceiro
E você aqui não entra
Sem dizer quem é primeiro
— Moleque, abra o portão
Saiba que sou Lampião
Assombro do mundo inteiro.

Então esse tal vigia
Que trabalha no portão
Dá pisa que voa cinza
Não procura distinção
O negro escreveu não leu
A macaíba comeu
Lá não se usa perdão.

O vigia disse assim:
— Fique fora que eu entro
Vou conversar com o chefe
No gabinete do centro
Por certo ele não lhe quer
Mas conforme o que disser
Eu levo o senhor pra dentro.

Lampião: — Vá logo
Quem conversa perde hora
Vá depressa e volte já
Eu quero pouca demora
Se não me derem ingresso
Eu viro tudo “asavesso”
Toco fogo e vou embora.

O vigia foi e disse
A satanás no salão:
— Saiba, vossa senhoria
Aí chegou Lampião
Dizendo que quer entrar
E eu vim lhe perguntar
Se dou-lhe o ingresso ou não.

— Não senhor, satanás disse
Vá dizer que vá embora
Só me chega gente ruim
Eu ando muito caipora
Estou até com vontade
De botar mais da metade
Dos que têm aqui pra fora.

Lampião é um bandido
Ladrão da honestidade
Só vem desmoralizar
A minha propriedade
E eu não vou procurar
Sarna para me coçar
Sem haver necessidade.

Disse o vigia: — Patrão
A coisa vai arruinar
Eu sei que ele se dana
Quando não puder entrar
Satanás disse: — Isso é nada
Convide aí a negrada
E leve os que precisar.

Leve três dúzias de negros
Entre homem e mulher
Vá na loja de ferragem
Tire as armas que quiser
É bom escrever também
Pra virem os negros que tem
Mais compadre Lucífer.


E reuniu-se a negrada
Primeiro chegou Fuxico
Com um bacamarte velho
Gritando por Cão de Bico
Que trouxesse o pau da prensa
E fosse chamar Trangença
Na casa de Maçarico.

E depois chegou Cambota
Endireitando o boné
Formigueiro e Trupizupe
E o crioulo Quelé
Chegou Benzeiro e Pacaia
Rabisca e Cordão de Saia
E foram chamar Bazé.

Veio uma diaba moça
Com a calçola de meia
Puxou a vara da cerca
Dizendo: — A coisa está feia
Hoje o negócio se dana
E disse: — Eita baiana
Agora a ripa vadeia.

E lá vai a tropa armada
Em direção do terreiro
Pistola, faca e facão
Clavinote e granadeiro
E um negro também vinha
Com a trempe da cozinha
E o pau de bater tempero.

Quando Lampião deu fé
Da tropa negra encostada
Disse: — Só na Abissínia
Oh! Tropa preta danada
O chefe do batalhão
Gritou: — As armas na mão
Toca-lhe fogo, negrada!


(...)




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